8 de março – Dia Internacional da Mulher: Uma vida de muitas vestes ou um sonho de muitas vidas

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Como exemplo de reflexão e luta por direitos, força feminina e atuante, segue um perfil da Diretora do CDH Irma Kniess, escrito pela Jornalista Emanoele Girardi.

Nem o sol do horário de verão acorda tão cedo quanto ela. Todo dia levanta às cinco e meia da madrugada, toma seu café, toma banho e, sem vaidade, veste uma roupa. Pega o ônibus, vai ao trabalho, lê o jornal. Senta, trabalha. Conversa. Faz café. Atende as pessoas. O sol se põe e ela tem reunião, quase todos os dias. Vai para casa acompanhada da lua. Ajeita a casa que divide consigo mesma e com quem precisa. Dá-se ao capricho de assistir televisão, de vez em quando.

Ri. Ri com a risada rouca, frouxa… discreta como a dona. Discreta e sem vaidade como sempre fora, desde quando nasceu, no interior de Santa Catarina, na cidade de Taió.

Irma Kniess teve oito irmãos. Duas irmãs não conheceu, nasceram e morreram ainda crianças, antes dela vir ao mundo, quando a família ainda vivia na cidade de Tubarão.

– Morreram juntinhas, quando voltavam do enterro de uma, a outra faleceu.

Foi então que toda a família Kniess mudo-se para Taió, mais precisamente para Rio das Pedras. As perdas apenas a fortaleceram. Aos seis anos perdeu o pai e sua mãe teve que trabalhar duro na lavoura para sustentar a casa e pagar as dívidas.

A humildade transparece não só na fala, mas no jeito de agir, no olhar. Criada em família simples, nunca conheceu a palavra luxo. Comida não era problema. Mas a vaidade nunca a pertenceu.

– Não era que nem hoje, que cada festinha a gente compra uma roupa. A gente não tinha muitas condições, então ganhava um vestido por ano para ir a Festa de Nossa Senhora de Salete. Mas a gente vestia e era feliz com o que tínhamos.

Quando pergunto como ela era quando jovem, e se gostava de se arrumar. Ela sorri, docemente, e fita o horizonte, lembrando.

– Quando eu tinha uns 14 anos, comprei um brinquinho, sabe, daquele de apertar na orelha… Ah, mas não gostei, não. Só tive um brinco na vida, mas eu não gostava, pode ser que por causa do ambiente que a gente vivia, a gente não se preocupava com essas coisas.

A família simples, vivia quase que isolada. Se precisasse de um remédio, a farmácia mais próxima ficava a 12 quilômetros de onde viviam. Uma vida de muito trabalho e forte presença da fé.

– Durante a semana trabalhávamos muito e brincávamos com os animais. Aos domingos a gente ia à igreja pela manhã e depois a juventude se reunia para tomar café e conversar. Às vezes tinha um baile pra gente ir dançar, mas nem sempre.

Mesmo assim, Irma gostava de ficar em casa. Gostava das longas conversas com a família banhadas à luz de querosene e que terminavam com jogos de carta com os folhetinhos do Sagrado Coração de Jesus. Gostava também de costurar. Foi quando aos 14 anos, com um vestido bonito e um único brinco, foi morar na “cidade” (Taió) para fazer curso de costura. Ficou lá um ano e meio. Vivia na casa da mulher que lhe ensinara a costurar e também a cozinhar.

A professora dessa arte era dona de uma loja de noivas, Irma, então entre seus 14 e 15 anos ajudava nas costuras e nos serviços da casa. Talvez a proximidade com tantos vestidos, tantas noivas, despertara na grande menina, que com 10 anos já media a altura de adulta, a vontade de casar e formar uma família. Mal sabia ela por quais caminhos o destino a levaria.

Irma Kniess, 74 anos. Diretora do Centro dos Direitos Humanos de Joinville. Solteira. Mais de dois mil quilômetros de vida rodados. O cabelo ainda é cortado um palmo acima dos ombros, e é sempre puxado para trás. A pele branca com sardas, os olhos azuis e o corpo grande não escondem a nacionalidade. Irma é de descendência alemã e apesar da vida que teve na cidade, ainda guarda o sotaque e o jeito manso e arrastado do interior. Talvez sem que perceba, escolhe sempre roupas de tons neutros, e principalmente, cor de rosa. Mas nem sempre foi assim. Por muito tempo vestiu-se por inteiro de azul, com véu branco enrolado na cabeça.

Uma nova roupa e uma nova vida

Irma cresceu, seus sonhos também. Passados os 15 anos, já não a interessava mais o assunto casamento.

– Não que eu não ache bonito, eu acho lindo o casamento… Mas acho também que a pessoa tem que ter vocação. E minha vocação não era essa. Até tinha uns moços interessados, mas isso não me preenchia, eu achava que deveria ser solta, ninguém me mandando.

Terminou o curso e voltou pra casa. A irmã mais nova já havia partido para uma nova vida ao lado do marido. A mãe havia adoecido, outra razão para a sua volta. Agora tinha que ajudar na casa e cuidar da mãe, Maria, que ficara sozinha. De mansinho, Dona Maria previu o que viria no destino de Irma.

– Ela sempre dizia que queria ter outra filha “irmã”, mas que não usasse aquele hábito preto – ei, carinhosamente na lembrança da mãe – Então ela soube de outra congregação em que o hábito era azul, preso por um cordão vermelho e véu branco. Ela falou que aquela roupa era bonita.

A Congregação-de-hábito-azul não aceitava que as filhas deixassem as mães viúvas em casa. Mas não demorou muito para que Irma fosse para lá. O destino levou mais uma parte de sua família, quando tinha 19 anos. As asas que há muito estavam abertas, ajudaram, então, a alçar voo em direção a Lages. Não era mais a menina retraída com um único vestido, Irma era uma mulher independente, com uma mente diferente.

– Não queria viver para uma pessoa, queria servir muitas pessoas, construir um Reino. Eu pensava em um mundo diferente. Um lugar em que as pessoas se amem e se querem bem.

Pode parecer utópico e até surreal, mas ela ainda vê um mundo diferente. Talvez seja seu único sonho que ainda guarda no olhar quando fala.

Foi para Lages morar no pensionato cuidado pelas Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado, um lugar que abrigava estudantes universitários. Irma dedicou-se durante um ano ao serviço da casa já que, quando nova, tinha desistido da escola.

– Eu não aprendia, não sei o porquê. Talvez porque tinha que cuidar das minhas irmãs menores, não sei. Eu fiquei quatro anos na primeira série (eram apenas quatro, que equivaliam ao ensino fundamental e médio, naquela época), e depois saí. Eu não sabia nem escrever meu nome.

A doce menina que via o mundo com os olhos de Deus, não se deixou abalar pela falta de estudo. Participava das catequeses que as Irmãs davam na comunidade.

Um ano depois, com bagagens de sonhos e quilômetros de lembrança, Irma partiu. Foi fazer o noviciado em Porto Alegre. Suas mãos de ouro e sua foram bem aproveitadas pelas Irmãs. Ela costurava dia e noite as roupas das mulheres da congregação. Literalmente, dia e noite. Essa menina doce e super ativa não conseguia descansar, nem quando obrigada. No noviciado o toque de recolher era às 21h, às 5h30 era hora de levantar para rezar (talvez daí venha sua rotina de levantar cedo), e às 7h30 era hora de ir aos trabalhos. Mas para Irma, o trabalho continuava.

– Eu não conseguia dormir de noite, então ganhei uma licença para ir dormir mais tarde. Dormia meia-noite, duas horas e pra mim estava bom. Eu não tinha sono aí ficava costurando.

As roupas que fazia, na maioria representariam a vida de uma costureira, normalmente. O hábito era apenas usado dentro da congregação ou em ocasiões especiais. Para os trabalhos nas comunidades elas precisavam de roupas normais. Lembra-se que, às vezes, tinha que costurar 20 ou 30 hábitos para casa e os “oficiais”.

– E o que eles tinham de diferente? – pergunto curiosa.

– Nada. Rimos.
O hábito que usavam em casa não era preto. Era feito de algodão, mangas compridas, saia
pregueada e uma manta por cima. O hábito era azul. O véu era branco, de seda, amarrado sob os cabelos. Na cintura um cordão vermelho de lã.

– Muito bonito o hábito era – contempla.

Enquanto estava lá, mesmo sem muito estudo, Irma fez outro curso de costura que, na época, valia como faculdade.

– Se eu quisesse, poderia ter sido estilista.

Mas apesar de gostar de costurar, Irma veio ao mundo para mudá-lo. Foi viver em pelotas. Trabalhou na cozinha de um lugar que era internato, pensionato e creche. Nesse local viviam mais de 70 pessoas que ajudavam a cuidar do lugar e das 200 crianças da creche. Ficou 10 a 12 anos lá. E então veio o Concílio.

Mudanças na vida de fé

O Concílio Vaticano II foi como uma adaptação da Igreja Católica aos tempos modernos. O objetivo era discutir a ação da Igreja e promover a renovação das ações mediante à realidade do povo. Muitas possibilidades se abriram.

– Foi como uma revolução na Igreja.

Convidada por uma amiga, uma Irmã que já trabalhava na comunidade, foi morar no bairro e dar cursos para a população – uma das novas possibilidades a partir da abertura da igreja. Elas estavam em três e viviam numa casinha bem pequena, sem luxo.

– O Bispo foi inaugurar no Natal, ele deu o nome de Gruta de Belém – Lembra com olhos de saudades.

Muitas Irmãs não aceitavam a decisão das três, tinham inveja da vida que elas levavam e as criticavam. O grupo se desgastou e uma das três desistiu daquela vida com o povo. Irma sentiu a necessidade de voltar a estudar. Ela recomeçou no terceiro ano primário, aos 33 anos, e aos poucos se formou no Ensino Médio.

Mesmo fora da Congregação a Gruta de Belém respondia às Irmãs. Quando a casa se mudou, Irma também teve que adicionar milhas a sua história e partiu para viver numa casa de formação (parte do noviciado, como um estudo das regras da congregação), em Caxias do Sul. Decepcionada com algumas posturas e desencantada com a tal formação, foi quando a independência de Irma falou mais alto.

– Pensei: Acho que isso não tá dando pra minha vida. Eu estava meio amarrada e resolvi pedir uma licença.

Então foi para Joinville morar com seu irmão.

“Vim para Joinville começar uma nova vida”

Irma se sentia incomodada ao ver as pessoas na comunidade batalhando e não conseguindo as coisas, enquanto dentro da congregação ela tinha tudo.

– Eu vim para trabalhar e servir ao Reino, mas eu também tinha que ir atrás para conquistar as coisas. Então me questionei e falei: o Reino eu posso servir em qualquer lugar.

Em Joinville, Irma começou a trabalhar em uma facção, e ajudava na comunidade dando catequese. Resolveu fazer curso de enfermagem, já que tinha aprendido um pouco desses cuidados enquanto vivia entre as Irmãs. A ideia era novamente utópica, sonhadora: Ela queria ajudar as pessoas no hospital.

Não deu certo. Enquanto fazia o estágio no hospital percebeu que não tinha tempo para conversar com os pacientes, muito menos para fazer trabalho pastoral.

– Era uma correria, não queria aquilo pra minha vida. E depois, eu não gostava de dar injeção, ficar colocando a agulha nos outros, uh-hum.

Logo que chegou a cidade, Irma se apresentou ao padre do Boa Vista e conheceu Maria da Graça Bráz – que hoje dá nome ao Centro dos Direitos Humanos em que trabalha. Graça, como Irma chama carinhosamente, também tinha deixado a congregação para trabalhar na comunidade. As duas logo se entenderam, moraram juntas e, mais tarde, Irma deixou a facção e trabalhou apenas na Paróquia.

Saíram da Paróquia quando o padre morreu, e começaram a trabalhar no Centro dos Direitos
Humanos em 1991. Em 92 assumiu a coordenação do Centro e até hoje está lá. Com seu jeito

mansinho e sonhador, abraça quantas pessoas e quantos problemas os braços aguentarem. É mãe, irmã, amiga de quem conhece, convive e adora.

Irma não está na Congregação, mas mantém os votos. Filhos? Tem todos. Adota-os. Além das pessoas, abraça projetos e causas. Mas sempre que mais. Ainda sonha. Ainda quer um mundo melhor. A única vaidade que guarda é o sorriso.

– Se fosse pra recomeçar, eu viveria tudo de novo! Sempre peço que Deus dê um jeito para que a gente consiga trabalhar, para vivermos melhor.

Modesta, olha para o caderno que tenho sob as mãos e diz:

– Acho que já acabaram as perguntas – Ela ri.

E depois de milhas de viagem pelo sul das lembranças, recomeça a rotina… Trabalha, trabalha, trabalha. Senta. Conversa com as pessoas. Faz o café…

– Vamos tomar café!

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