ÓBVIO?!

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS AINDA É UM CONCEITO COMPLEXO E EM CONSTRUÇÃO

Valdirene Daufemback

Valdirene Daufemback é psicóloga, professora dos cursos de direito e psicologia da Univille e diretora do Centro dos Direitos Humanos Maria da Graça Bráz, de Joinville, que completou 30 anos em 2009

 

Fui convidada para escrever sobre direitos humanos, tendo em vista o aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no dia 10. Os que me indicaram acreditavam que, por minha atuação, seria bem-sucedida na tarefa. Eu assim pensava, tanto que aceitei. Mas agora, organizando minhas ideias, vejo-me em embaraços. Analisem comigo.

Comecei pensando em personagens históricos que defendem com clareza e convicção os direitos humanos, cujo discernimento e idealismo me inspiram: Nelson Mandela, Gandhi, dom Hélder Câmara, Leonardo Boff, Paulo Freire, Benazir Bhutto. Mandela esteve na luta armada e ficou 26 anos preso. Gandhi usava a desobediência civil como estratégia de enfrentamento. Dom Hélder Câmara foi perseguido e identificado como “Arcebispo Vermelho”. Leonardo Boff foi calado por um “silêncio obsequioso”. Paulo Freire foi exilado, e Benazir foi assassinada. Pessoas cujos pensamentos e atitudes orientam os defensores de uma sociedade mais justa e solidária, mas que não são unanimidade, foram punidas pelos mesmos ideais que as tornaram reconhecidas.

Seriam elas “direitas” o suficiente para ser defensoras dos direitos humanos? Ser “direito” remete àquela ideia de caminhar no trilho, agir certo. E o certo, todos sabem o que é: orientar-se pela norma e pelos interesses vigentes, ser “normótico”. Não, “direitas” elas não são. Sabem que as injustiças estão impregnadas nas instituições, nas leis, na história oficial, nos meios de comunicação, nos mitos sociais, no desenvolvimento a qualquer preço, nos simples hábitos domésticos que sobrepõem homens às mulheres. Essas pessoas são lúcidas demais para cair nessas armadilhas, seguem princípios, não comportamentos preestabelecidos; não se protegem nos papéis institucionais.

É preciso olhar para além do óbvio. Sob o escudo da isenção, imparcialidade, neutralidade, ordem e moral, as informações são colocadas como verdades a serem respeitadas, seja na escola, na igreja, nos livros e pela TV, construindo uma consciência “enlatada” da realidade. Quando alguém questiona as coisas, dá aquela sensação incômoda de estar fazendo algo errado. Mais que dois porquês já é excesso de conversa.

Falar em direitos humanos nos exige essa irreverência, para além da “normose” dos dois extremos: direitos humanos são um ideal ou direitos humanos servem para defender bandidos? É preciso levar em conta a construção histórica que consolidou na Declaração Universal dos Direitos Humanos princípios mínimos de convivência na humanidade com a pretensão de conjugar liberdade e igualdade como exigências centrais. Compõem esse cenário histórico o terror do holocausto, o paradigma do apartheid, a escravidão, a dizimação da população indígena, o potencial de destrutividade das armas atômicas, químicas e biológicas, a perspectiva da destruição do planeta, entre outras vergonhosas produções humanas. A defesa dos direitos de todos os humanos nos une na luta de não sermos permissivos com essas barbáries; deve ser uma posição de caráter normativo, político e pedagógico de todos nós, porém o Estado é o primeiro responsável pelos direitos humanos. A ele cabe garantir, respeitar, promover, proteger e realizar todos os direitos de todos, além de reparar as pessoas cujos direitos foram violados. Lembremo-nos que foi o Estado, em nome da paz, progresso, ordem e tantas outras ideias de limpeza e disciplina que realizou e realiza as principais violações à vida humana.

Especificamente no Brasil, o momento de maior intensificação da articulação dos setores sociais na defesa dos direitos humanos foi nas décadas de 70 e de 80, na busca de se desvencilhar do período ditatorial. Essa realidade também estava refletida em Joinville. Aqui, a violência generalizada praticada naqueles anos e a forte exploração da mão de obra operária fizeram com que um grupo de pessoas vinculadas aos movimentos sociais, às igrejas e instituições comprometidas com a causa dos pobres e excluídos fundasse o Centro dos Direitos Humanos Maria da Graça Bráz, que completou 30 anos de existência em 2009.

No início do século 21, com a concretização dos instrumentos internacionais de direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico, o incremento da sensibilidade e do conhecimento sobre os assuntos globais por parte dos cidadãos(ãs) e a consolidação do modelo democrático de governo do País, a sociedade brasileira adquiriu mais mecanismos de participação popular e meios de reivindicar a defesa de seus direitos. Porém, temos um novo problema: observa-se um esvaziamento do envolvimento da população nos espaços públicos e, por vezes, intervenções desqualificadas da comunidade nas instâncias de debate e deliberação das políticas públicas. São fatores que aumentam a vulnerabilidade desses mecanismos de participação popular, que ficam à mercê dos sistemas de manipulação dos interesses políticos e econômicos da elite.

Voltando aos meus embaraços iniciais. Direitos humanos não são qualquer coisa; direitos humanos, embora pareçam algo hermético e polido, são construções que se deram por meio de muita luta e enfrentamento. Embora alguns digam que existe somente uma classe de pessoas que merece os direitos humanos, atenção: foi justamente para prevenir essas classificações alienadas e discriminatórias que em 10 de dezembro de 1948 foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Aguce sua sensibilidade, conheça as pessoas, aproxime-se da comunidade, posicione-se, veja para além do óbvio. Dê valor à vida.

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