Prédica – Cegueira

Prédica proferida pela Capitã Paula Mazzini Mendes do Exército da Salvação, na celebração de encerramento das atividades da Comissão Ecumênica de Joinville, na Paróquia Luterana da Paz, no dia 24/11/2019.

John Newton é o autor de um dos hinos mais apreciados de nossa cultura cristã. “Amazing Grace”, ou “Graça Maravilhosa”, foi composto como forma de registrar seu arrependimento por se envolver com atividades reprováveis aos olhos de Deus. Newton era um traficante de escravos e usava seus navios para transportar pessoas de forma subumana. No meio de uma tempestade, porém, viu o quanto era frágil e desamparado e clamou pela graça de Deus. Após essa metanoia e uma longa caminhada, se tornou pastor anglicano e influenciou pessoas como William Wilberforce, responsável pelo movimento abolicionista que tornou ilegal a escravidão na Inglaterra do século 18.

Paulo de Tarso, o apóstolo, passou por uma experiência semelhante. A tempestade em sua vida não veio no meio do mar, mas no meio de uma estrada. Veio em forma de luz. E após essa experiência, sua vida também mudou. A narrativa do livro de Atos conta como ele, um fariseu perseguidor de judeus conversos, se tornou um defensor desse povo e, mais tarde, perseguido por causa de seus posicionamentos.  Assim como Newton, ele “era cego, mas agora via”.

A cegueira é uma metáfora interessante. Tanto que José Saramago, nosso prestigiado escritor e poeta português, escreveu um romance influenciado por essa ideia. Em “Ensaio sobre a cegueira”, ele diz que cegueira é “viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”. Saramago percebeu que o estado de cegueira vai muito além da cegueira física. Ele também diz: “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem, cegos que, vendo, não veem”

Há várias formas de cegueira. A mais óbvia, a física, tem feito o mundo se adaptar. Há livros e placas de elevadores em braile, chão com texturas, auxiliares no metrô e sinais de trânsito com campainhas especiais. Ainda falta muito para que um cego se sinta confortável, mas já demos um passo.

Há porém, uma cegueira mais grave, por ser prejudicial e devastadora: a cegueira que me impede de ver outras pessoas além de mim mesma. De ver meu próximo, de se compadecer com sua dor e de lutar para extingui-la.

Esse tipo de cegueira é que tem gerado o racismo, responsável por exemplo pelo extermínio de mais de 6 milhões de judeus durante a segunda guerra, de quase 1 milhão de pessoas da etnia Tutsi no genocídio de Ruanda em 94 e recentemente de uma família negra, executada por engano pela polícia do Rio de Janeiro com 80 tiros, enquanto ia para um chá de bebê e, por serem negros, foram confundidos com traficantes.

Esse tipo de cegueira tem gerado o sexismo, responsável por colocar as mulheres em um lugar onde elas nunca quiseram estar – subjugadas, com salários menores e menos privilégios. Que faz com que meninas de 11 anos sejam legalmente dadas em casamento a homens de 50 em países como o Irã ou que a Mutilação Genital Feminina ainda seja uma realidade em vários países africanos. Que faz com que o Brasil continue sendo o quinto pais mais perigoso para uma mulher viver e que exista a necessidade de termos uma lei como a Maria da Penha, criada especificamente para tentar lidar com os cada vez mais frequentes casos de violência doméstica.

É esse tipo de cegueira que gera a xenofobia. Existem no planeta 40 milhões de pessoas internamente deslocadas, 25 milhões de refugiados, segundo a ACNUR. O Brasil, mesmo sendo um país em desenvolvimento, já viu mais de 85 mil venezuelanos cruzarem a fronteira desde o começo da crise na Venezuela. Nossos bairros, escolas e igrejas estão se tornando cada vez mais diversos em termos de cultura: haitianos, sírios, venezuelanos, cubanos. Mesmo assim, nossos irmãos ainda encontram dificuldades de achar empregos decentes, escola para seus filhos e atendimento médico imparcial. Ainda encontram placas em restaurantes, dizendo “refugiados, mantenham o banheiro limpo”.

É esse tipo de cegueira que gera a homofobia, que em seu extremo tem causado mortes e suicídios. O Brasil é um dos países mais homofóbicos e intolerantes com o público LGBT. De acordo com o The Guardian, “Pelos menos 445 LGBTs brasileiros morreram vítimas de homofobia em 2017, com um aumento de 30% em apenas um ano”. Para confirmar esse dado, vimos o primeiro político assumidamente gay fugir do país como resultado de ameaças a sua vida e um adolescente de 14 anos tirar sua vida após sofrer bullying na escola.  

É esse tipo de cegueira que gera a aporofobia. Um termo recente, cunhado nos anos 90 pela filosofa espanhola Adela Cortina, que percebeu que existe um sentimento diferente para com um estrangeiro se ele for pobre. Turistas e celebridades são bem-vindos, mas refugiados que são pobres nos incomodam. Nossa atitude natural para com um morador de rua geralmente é de desprezo e rejeição. Somos convencidos de que o pobre traz com ele problemas, criminalidade e drogas. Assim, somos levados a conclusão de que temos que nos defender dessa “classe” e assim se manifesta a aporofobia: medo e rejeição do pobre.

É esse tipo de cegueira que está destruindo a Amazônia. Que tem minimizado a luta pelo meio ambiente e a biodiversidade, rotulando-a de mero partidarismo. Que tem dizimado os povos indígenas e devastado suas terras, que tem tornado as notícias de desmatamentos e queimadas cada vez mais frequentes em nossos noticiários, que tem nos feito ver cenas como o recente derramamento de óleo em nosso litoral nordestino. 

A cegueira enfim, é uma metáfora e tanto. E não foi só Saramago que percebeu isso. Jesus de Nazaré também falava de um tipo de cegueira que ia além da condição física. E quando ele, que sempre foi bom em figuras de linguagem, diz que veio trazer vista aos cegos (Lc 4.18), não está falando só de uma cura física, embora tenha literalmente curado muitos cegos.

Está falando de tirar as traves que nos impedem de ver quem somos e que nos impedem de ver nosso próximo. Traves que enganam, que oprimem, que distorcem, que sufocam, que cansam, que desviam nosso olhar daquilo que realmente importa. 

Todos nós precisamos de uma metanoia, seja ela em forma de uma tempestade, ou uma forte luz no meio do nosso caminho. Algo que abra nossos olhos, que nos tire da condição de cegueira e nos faça ver o mundo ao nosso redor.

Estamos celebrando aqui hoje o ecumenismo: que é um apelo à unidade de todos os povos.

Que nossa caminhada seja um dar de mãos, mas também um abrir de olhos.

Que seja um refresco para a alma, mas também um antídoto contra o egoísmo natural do ser humano.

Pois quando dou a mão para meus irmãos, escolhendo não olhar para as diferenças, mas sim para as semelhanças, eu dou um passo em direção a luz.

E temos muitas diferenças entre nós: de vestimentas, de doutrinas, de cosmovisão, de liturgia.

A luta que nos une, no entanto, é bem maior do que isso.

Nosso mundo, o mundo que temos em comum, está gritando de dor.

Que possamos escolher não permanecer na cegueira, no conforto, no egocentrismo, mas que escolhamos ver e, vendo, possamos nos unir e agir. Pois, como bem disse Fannie Lou Hamer:  “ninguém é livre até todos sermos livres”.

Que nosso Pai das luzes, o Senhor das Metanóias e das tempestades, nos abençoe com um incomodo que nos impeça de nos conformarmos com a cegueira.

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