Nota de Repúdio

Nota pública dos professores do Curso de Jornalismo do Bom Jesus/IELUSC sobre o Projeto de Lei Ordinária n. 221/2014, proposto pela Vereadora Pastora Léia.

A coordenação dos Curso de Jornalismo do Bom Jesus/IELUSC e os professores abaixo assinados vêm, através desta nota, expressar seu repúdio ao projeto de lei que tramita na Câmara de Vereadores de Joinville e que pretende instituir no sistema municipal de ensino o “Programa Escola sem Partidos”. Estamos, deste modo, juntando-nos aos demais segmentos da sociedade civil organizada, incluindo entidades estudantis, movimentos sociais e grupos de intelectuais, docentes e pesquisadores que enxergam nesse projeto uma afronta às liberdades constitucionais e ao projeto de educação previsto nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Sabemos que o referido Projeto de Lei está situado dentro de um movimento de dimensões mais amplas que vem apresentando a mesma proposta em outros municípios e estados do país, com o objetivo de coibir a abordagem de temas e conteúdos que fomentem a problematização do senso comum e, consequentemente, a reflexão e a ação crítica sobre crenças e morais historicamente dominantes. Trata-se, portanto, de um movimento ideologicamente posicionado que, ao contrário da “neutralidade” defendida, tem pretensões políticas evidentes.  O Art. 2º do referido Projeto de Lei Ordinária determina: É vedada a prática de doutrinação política e ideológica em sala de aula, bem como a veiculação, em disciplina obrigatória, de conteúdos que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos estudantes ou de seus pais ou responsáveis. Em primeiro lugar, temos clareza que a noção de “doutrinação” pressupõe uma concepção unilateral e autoritária da educação que coloca o estudante em condição passiva, desconsiderando sua capacidade de agência, de seleção e de crítica em relação aos conteúdos e temas abordados e discutidos em sala de aula. Tratar um estudante de qualquer faixa etária como sendo “a parte mais fraca na relação de aprendizado” significa desconsiderar o amplo e diverso escopo teórico e conceitual que, há mais de um século, tem nos alertado para a importância e a necessidade de se considerar o “educando” como um agente da sua própria aprendizagem que, nesta condição, deve participar do processo educacional mais do que ser mero “sujeito” de conteúdos e práticas predeterminadas. Em segundo lugar, a intenção de vetar “conteúdos que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos estudantes ou de seus pais e responsáveis” aponta para práticas pedagógicas autoritárias e preconceituosas, que parecem estar mais dispostas à reprodução de ideologias e crenças hegemônicas, excluindo dos currículos escolares e dos planos de ensino temas e questões relativas às crenças, conhecimentos e formas de expressão de grupos minoritários. Um programa educacional que está verdadeiramente comprometido com o “pluralismo de ideias”, com a “liberdade de crença” e com a “liberdade de consciência”, não pode, em hipótese alguma, vetar qualquer tipo de conteúdo. Entendemos, nesse sentido, que os Parêmetros Curriculares Nacionais (PCN) propostos já no final dos anos 90 têm proporcionado avanços significativos na garantia do “acesso de todos à totalidade dos recursos culturais relevantes para a intervenção e a participação responsável na vida social” (PCN, 1997, p. 27). Dentre os princípios norteadores dos PCN, está o compromisso do processo educacional e da escola com a formação para a cidadania que, por sua vez, demanda atenção dobrada às exigências que se impõem no mundo contemporâneo. Essas exigências apontam a relevância de discussões sobre a dignidade do ser humano, a igualdade de direitos, a recusa categórica de formas de discriminação, a importância da solidariedade e do respeito. Cabe ao campo educacional propiciar aos alunos as capacidades de vivenciar as diferentes formas de inserção sociopolítica e cultural. Apresenta-se para a escola, hoje mais do que nunca, a necessidade de assumir-se como espaço social de construção dos significados éticos necessários e constitutivos de toda e qualquer ação de cidadania (PCN, 1997, p. 27) .Tais orientações representaram, na época de sua elaboração, a vanguarda do pensamento educacional e têm se consolidado nos últimos anos através de políticas públicas e iniciativas populares que estão tornando o ambiente educacional mais diverso, heterogêneo e inclusivo. Neste contexto, (…) a inserção no mundo do trabalho e do consumo, o cuidado com o próprio corpo e com a saúde, passando pela educação sexual, e a preservação do meio ambiente são temas que ganham um novo estatuto, num universo em que os referenciais tradicionais, a partir dos quais eram vistos como questões locais ou individuais, já não dão conta da dimensão nacional e até mesmo internacional que tais temas assumem, justificando, portanto, sua consideração. Nesse sentido, é papel preponderante da escola propiciar o domínio dos recursos capazes de levar à discussão dessas formas e sua utilização crítica na perspectiva da participação social e política (PCN, 1997, p. 27). Portanto, é inadmissível que haja qualquer retrocesso na democratização dos processos e espaços educacionais. Entendemos que uma escola inclusiva não deva, por princípio, vetar ou condicionar a abordagem de qualquer tipo de tema, conteúdo ou assunto. Para tanto, apoiamo-nos nas liberdades previstas pela Constituição Federal de 1988 para o exercício da educação, em especial as liberdades de a prender e e nsinar . Segundo o Art. 206 da Constituição Federal, o ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: […]; II liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; […]. O Art. 3º da Lei n. 9.394/1996, Lei de Diretrizes e Bases para a Educação, reafirma estas liberdades garantidas pela Constituição Federal: Art. 3º. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: […]; II liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; IV respeito à liberdade e apreço à tolerância; […]. Entendemos que a fundamentação básica do Programa Escola sem Partidos consiste numa falácia argumentativa, pois afirma, sem qualquer verificação ou evidência, que professores e autores de livros didáticos têm “abusado” da liberdade de ensinar para “obter a adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas” (#EscolaSemPartidoJá, s/d). E, assim, o referido Projeto de Lei se perde numa confusão conceitual que associa, equivocadamente, uma pretensa “neutralidade” pedagógica à garantia do “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico” (PL 221/2014, p. 1). Ora, nada que é “neutro” pode ser plural. Se acreditamos que os processos educacionais devam estar abertos a todas as ideias, crenças, visões de mundo, orientações e estilos de vida, devemos obrigatoriamente considerar que o ambiente escolar constitui-se como um espaço de diálogo, e também de disputas, cuja natureza é essencialmente política. Neste sentido, o posicionamento do professor faz parte do seu compromisso ético para com os alunos, sem que isso deva ser entendido como tentativa de “doutrinação”. Num ambiente inclusivo e dialógico, a aprendizagem decorre do debate de ideias, das trocas de conhecimentos, da liberdade de posicionamento e da construção de consensos e dissensos, contando com a participação da família e das comunidades locais conforme a pertinência e a necessidade. Por fim, está claro que o pano de fundo deste Projeto de Lei é a exclusão e a censura a conteúdos e temas que, historicamente, representam uma ameaça à manutenção do status quo de grupos social, política e economicamente dominantes em nossa sociedade. Dentre estes conteúdos sistematicamente rechaçados, destacam-se aqueles relacionados à diversidade de gênero e orientação sexual, às religiões de matrizes africanas, às cosmologias indígenas, aos povos tradicionais etc. Deve-se lembrar, inclusive, que em 2015, mesmo sob intensos protestos dos movimentos sociais e de setores da sociedade civil organizada, o Plano Municipal de Educação foi aprovado sem a inclusão das questões de gênero e da cultura e religiões afro brasileiras entre seus conteúdos obrigatórios. Numa escola plural, verdadeiramente comprometida com a formação de cidadãos críticos, livres, conscientes das contradições do seu tempo e engajados na transformação das suas realidades, nenhum assunto deve ser proibido, como já afirmamos nesta nota. É contra essas práticas e intenções obscurantistas e autoritárias que nos posicionamos, colocando-nos em defesa de uma educação efetivamente comprometida com a emancipação humana.

Assinam:
Profª Me. Amanda Souza de Miranda
Profª Me. Beatriz Cavenaghi
Prof. Dr. Dauto da Silveira
Prof. Dr. Leandro Hofsttater
Profª Me. Lívia de Souza Vieira
Profª Drª Maria Elisa Máximo
Profª. Drª Marília Crispi de Moraes
Prof. Me. Maurício Melim
Prof. Dr. Sandro Galarça
Prof. Me. Sílvio Luis Melatti
Profª Me. Valdete Daufemback
Profª Me. Wânia Celia Bittencourt

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